Setor Português 28/03/2016

Paulo Hoff: “A decisão foi bastante populista”

Época
O oncologista Paulo Hoff, de 47 anos, um dos mais renomados do país, já publicou mais de 200 artigos científicos em revistas internacionais, é autor de 20 livros e participou do desenvolvimento de vários medicamentos. Agora, enfrenta um desafio peculiar em sua carreira. Como diretor-geral do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, testará uma substância tida, folcloricamente, como a "cura" para todos os tipos de câncer. A fosfoetanolamina sintética, fabricada e distribuída irregularmente durante anos no Instituto de Química da Universidade de São Paulo em São Carlos, causou tamanha comoção popular que ganhou verba para pesquisa do governo federal e estadual. Ela nunca passou por estudos em seres humanos para comprovar sua segurança e eficácia. Mas, na terça-feira, dia 22, sua fabricação e sua distribuição foram liberadas por um projeto de lei aprovado no Senado. Para entrar em vigor, a lei precisa da sanção presidencial. A médicos como Hoff, cabe a tarefa de levar a boa-nova à população – no caso de as pesquisas apontarem a eficácia da substância – ou frustrar a expectativa de milhares de brasileiros. "Não há uma conspiração para esconder uma “cura” para o câncer e garantir o mercado das grandes indústrias farmacêuticas. Seria possível comprar toda a comunidade científica e médica brasileira?", diz Hoff, em resposta à denúncia que se lê nas redes sociais. "A população se sente traída neste momento por tudo o que está acontecendo na política e fica imaginando que há uma conspiração por trás de tudo o que acontece."
– Qual é sua opinião sobre a aprovação desse projeto de lei no Congresso?
Paulo Hoff- Respeito a autonomia e a representatividade do Congresso. Ele busca atender a anseios da população. Mas devo dizer que a aprovação foi equivocada. É difícil aceitar uma lei que favorece um produto sem nenhum estudo. Essa decisão enfraquece o requerimento ético-científico para a aprovação de medicação. Estamos pulando a etapa fundamental, que é a do teste clínico. Isso pode criar um precedente para que outras terapias tenham seu período de desenvolvimento desprezado e sejam disponibilizadas ao público. E uma preocupação com a qualidade do produto que será oferecido a nossos pacientes. Há uma diferença entre respeitar o direito do paciente de buscar uma terapia alternativa e forçar o Estado a disponibilizar essa terapia alternativa quando não há comprovação científica. Isso é ruim para o Estado, é ruim para a população e pode ser ruim para o paciente.
– A liberação da fosfoetanolamina sem a aprovação cientifica coloca pacientes em risco?
Hoff- Vemos, especialmente nas mídias sociais, um número elevado de pessoas discutindo se a substância deve ser usada em vez de uma terapia já estabelecida. Isso é perigoso. Eu não diria que a lei tem essa intenção, mas muitas pessoas têm levantado essa hipótese. Seria muito triste que uma pessoa que tem opção terapêutica curativa abrisse mão dessa possibilidade para fazer o uso de uma terapia que pode ou não ser benéfica. Não se pode perder de vista que os tratamentos já aprovados atualmente curam um grande número de pessoas. O diagnóstico de câncer não é uma sentença de morte. No Brasil, 60% das pessoas com um diagnóstico de câncer são curadas com um tratamento disponível na rede pública ou na rede privada. Isso, às vezes, parece que está sendo perdido nessa discussão. É claro que ainda há muita gente que não será curada. É um horror que 40% da população diagnosticada com a doença morra, especialmente porque mais de meio milhão de brasileiros terão câncer. Mais de 200 mil morrerão. Não estou minimizando o problema. Mas, por outro lado, vejo as pessoas esquecer que existe uma fatia grande da população que se cura com o tratamento atual, que se baseia em um tripé de cirurgia, radioterapia e tratamento sistêmico, ou seja, com quimioterapia, hormonoterapia, terapia-alvo.
– A aprovação do projeto no Congresso foi uma medida populista?
Hoff – A decisão foi bastante populista. Não há embasamento científico para fazer a aprovação do produto neste momento. A razão desta aprovação é o clamor popular e a ideia de que os pacientes precisam ter uma esperança, uma chance, independentemente de o produto ter se mostrado benéfico ou não. Deixou de ser uma discussão científica. O que acontece se o resultado dos testes for negativo? Quem se responsabilizará por isso? É uma questão que eu não tenho como responder. O que vai acontecer no futuro tem de ser discutido com os legisladores. O caminho que o Congresso poderia ter tomado seria reforçar a área de pesquisa do Brasil. É muito triste estarmos falando sobre fazer ou não fazer pesquisa e aprovar ou não aprovar um produto disponibilizado há 20 anos. Isso mostra uma falha da sociedade, do governo e mesmo da ciência brasileira. Cientificamente, não há dúvida de que a resposta é fazer o estudo e determinar se há benefício ou não. Cabe à ciência ajudar o Estado a decidir o que pode ser disponibilizado, baseado em evidências científicas sólidas.
– Como o estudo sob sua coordenação ajudará?
Hoff- Estamos fazendo um estudo a pedido do governador Geraldo Alckmin, que se somará à pesquisa do grupo de trabalho interministerial. Dividimos o estudo em dez braços, para testar em tumores diferentes. Dessa maneira, damos à fosfoetanolamina uma chance real de mostrar benefício biológico contra alguns tipos de tumor. Infelizmente, há a idéia de que esse produto seja bom para todo mundo. A probabilidade de descobrir um tratamento que possa tratar todos os tipos de câncer de maneira eficaz é muito, muito pequena. Na medicina, não falamos "sempre" nem "nunca". Não diria que é completamente impossível, mas é muito próximo disso. Não acredito hoje que tenhamos um produto que possa atuar em todas as linhas de formação de um tumor. Para ser considerada eficaz, a fosfoetanolamina tem de fazer efeito no tumor em pelo menos 20% dos pacientes. É isso que se espera hoje de um produto quando ele entra na fase de testes clínicos.
– Os primeiros dados do grupo formado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação não mostraram bons resultados em células no laboratório. Vale a pena prosseguir?
Hoff- É claro que preferiríamos ter visto resultados mais animadores saindo da equipe de Brasília. Mas, uma vez que você tem um produto que está sendo usado por 40 mil pessoas, segundo algumas estimativas, e que gerou uma comoção nacional a ponto de gerar uma lei no Congresso em tempo recorde, passando pela Câmara e pelo Senado, temos uma obrigação como sociedade de resolver definitivamente a questão. O estudo em seres humanos ajuda a responder a uma questão importante: se há atividade biológica ou não quando a substância está no organismo. Em um período relativamente curto, em torno de seis meses, já teremos uma idéia muito clara se há uma ação biológica ou não. Não é a resposta definitiva, mas, pelo menos, indica se há alguma ação.
– O senhor já participou do desenvolvimento de vários medicamentos. Com base em sua experiência, as perspectivas da fosfoetanolamina são boas ou não?
Hoff – Como ser humano e como oncologista, torço para que ela se mostre ativa. Como cientista, eu prefiro esperar o resultado do estudo antes de dar essa resposta. De cada 100 substâncias que entram na fase de estudo em seres humanos, menos de dez atingem o resultado final positivo. Se você olhar para substâncias que não são terapia alvo-molecular, ou seja, desenvolvidas especialmente para atuar em uma alteração do tumor, esse número cai para menos de cinco. Infelizmente, o que vimos no passado é que é muito mais comum que um produto não dê certo. Mas alguns dão. É por isso que hoje nós temos muito mais produtos disponíveis do que tínhamos dez anos atrás. Existem mais de 800 moléculas em desenvolvimento, neste momento, como terapia contra o câncer no mundo.
– Há críticas sobre o uso de verba pública para estudar a fosfoetanolamina em detrimento de outras substâncias, porque ela não teria respeitado os critérios ético-científicos de desenvolvimento. O senhor concorda?
Hoff – Vivemos em um país que tem grandes dificuldades financeiras, em um país em que a pesquisa não conta com o mesmo destaque que tem em outros. É claro que os recursos que serão aplicados nessa pesquisa terão de vir de outras áreas, que ficarão um pouco descobertas. Por outro lado, a função da pesquisa clínica é melhorar a qualidade de vida dos pacientes, trazer novas opções terapêuticas, responder às perguntas importantes da sociedade. O custo de não fazer a pesquisa em termos de qualidade de vida dos pacientes e em termos de atrito de pacientes com agências reguladoras, com o governo, com médicos é maior do que o dinheiro investido.

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